quarta-feira, 14 de abril de 2010

CONTOS DE QUASE FADAS



 2-Mudanças e Mudanças

Já aprendi a gostar também desta casa como das outras pelas quais passei. E das amizades que comecei a fazer. Das raízes que comecei a criar. Gosto de ficar assim, olhando a roseira florida, tocá-la. Os olhos sempre espichados para cima, olhando os frutos de vez, aguardando o tempo de colhê-las. O chão como um tapete de folhas. Piso e sinto o toque da natureza, o estalido das folhas secas.

—Quanto tempo leva para crescer um pé de tangerina, bem?

—Uns cinco...seis...dez anos...sei lá!


Arrisquei, mesmo sem saber da lavoura, nascida e criada em cidade grande, plantei um pé de tangerina. Cavei um buraco, afofei a terra, joguei a semente e reguei durante todos esses anos. E veio o sol e veio a chuva e eu estive com ele.

Sei que não foi a consciência social o que me levou a militância política, talvez ,também a necessidade de fazer amigos, nesta cidade interiorana, antes tão desconhecida para mim. Mas, esse trabalho de base às vezes me desanima Lido com pessoas tão desinformadas ,tão influenciadas pela ideologia individualista... Horas, dias às vezes sem dormir, meses sem o lazer, em prol do outro, de todos. Entra governo e sai governo e as coisas continuam as mesmas, chego às vezes a pensar que é utopia, como eles dizem... As tangerinas, nunca vão perder o verde e que eu nunca vou saborear o seu suco.


Viajar de um lado para o outro tornou-se uma constante para as gentes nesses últimos tempos. Um pesadelo para um e um sonho para os outros. É enorme o contingente que desembarca todos os dias, todos as horas em São Paulo. E eu entre elas. Correndo atrás da vida.

—Esse ônibus podia andar mais devagar, não?

—Não, ta bom assim. A gente chega mais rápido.

Eu não sei se queria chegar. Na verdade não queria ter saído da minha terra.
Alguém consegue sintonizar uma boa emissora:


“... Essa casa não é minha e nem é meu esse lugar...” Ah, não! Essa música, não.

—Outra mudança? Encaixota-se tudo outra vez, bem uma trabalheira!?

—E, amor. Fui transferido pra capital.

—Mas logo agora que nós já tínhamos elevado o nível de consciência do pessoal do bairro, chegamos até a projetar um jornalzinho comunitário, a horta, o mutirão para as escolas !?


Estou deixando minha casa, minhas árvores, meus quintais. E as tangerinas continuam verdes. Mas ” ... se a marcha é demasiado lenta para a impaciência de muitos, não se esqueçam que é a classe operária que guarda vivas as melhores qualidades do caráter inglês. E se os filhos dos velhos cartistas não estiverem à altura da situação, os netos prometem ser dignos de seus avós.” Outra vez estas frases sublinhadas e eu nunca lembro porque as sublinhei. Penso, mas já não tenho tempo de averiguar. Fecho o livro. As pessoas, no corredor do ônibus se atropelam enquanto outros param para descarregar a bagagem.

Com licença! Com licença! Desço do ônibus Enfim a Tietê. Dezenas de pessoas se cruzam no trajeto até o taxi. Agora a fila. A minha vez não chega nunca! Entra uma senhora na minha frente. E, agora abro a porta. Moço, toca pra Nove de Julho. O motorista espera uns minutos e por fim:


—A senhora não é daqui, é?

— Não- respondo decidida e taxativa, sem delongas.


Dizer de onde sou? Contar tudo de novo? Não. Eu não saberia esconder a insatisfação. Esbocei um sorriso malogro, já que ele me observa no retrovisor. E sigo olhando pela janela: o frio não é só dentro do carro. Mas, pessoas gordas de roupa se agrupam quase que num impulso involuntário na tentativa de se aquecerem. Comércio a meia porta, os bares repletos. E chove, uma chuva fina, tão fina... parece triste, mas belo, estranhamente belo. Aquele limpador hipnotizava minhas lembranças. O que haveria de diferente naquele lugar que me deixava de tão mau humor? Ele continuava me olhando, e, antes que eu levasse o lenço ao rosto, aos olhos para ser mais exata começa a destrinchar a sua vida:


—Liga não dona. A senhora logo se acostuma. Isto acontece todos os dias, a toda hora. Estou nesse trabalho há muitos anos. Vejo e escuto de tudo. Eu mesmo não sou daqui. Vim pra cá rapazinho. Já fiz de tudo. Já andei com muita gente. Tive amigos e perdi...


Tento desviá-lo do assunto, chamando a sua atenção para a direção e reclamo que corre muito. Ele parece entender que eu não estou querendo conversa, que desejo ficar só com os meus pensamentos com minha amargura.

Não pude me despedir dos amigos. Dos parentes, apenas naquele almoço de domingo. Mas o que mais me aborrece, me corrói o peito e me esquenta a cabeça é a minha carreira interrompida mais uma vez. Não foi fácil conseguir aqueles músicos para incrementar o grupo. E o emprego: “engolindo sapos” para completar dois anos de carteira assinada e o que eu consegui foi mais cabelos brancos para a minha coleção. E agora, começar tudo de novo em outro lugar estranho, novas tentativas, entrevistas frustrantes e a procura de uma nova oportunidade. E tudo para acompanhar o marido. É claro que nos amamos, mas por que tem que ser assim tão difícil essa relação? Porque temos um ou outro que abdicar daquilo que mais gostamos, por quê? Não consigo compreender. Não. Não posso suportar mais isto.

Começo a reconhecer o endereço descrito por ele na carta.


—Moço, pode me deixar aqui mesmo. Pago e salto depois de um seco obrigado.

Já me decidi. Ele vai entender. Sempre respeitou o meu trabalho. Com o tempo a gente esquece tudo. Ficamos amigos e pronto. Agora é só encontrar um jeito de dizer a ele, uma oportunidade. Bato a porta do carro e observo que ele já me espera. No portão da casa, sorriso aberto. A casa, por fora, parece bem pequena, mas, agora já não tem importância. Pra ser sincera nunca teve. O tamanho de casa nunca foi problema pra mim. A rotina da vida em comum é que me sufoca.


—Gostou, querida?

Aquilo me doeu como um soco na boca do estômago. E eu gelei. Como dizer a ele da minha decisão, tomada durante a viagem? Ele segue mostrando-me a casa:


—Este é o quarto do “filhote”. É pequeno, mas tem uma boa circulação de ar, não é?

—Sim, mas...
 _Claro; você está zangada porque não a deixei escolher. Não havia tempo a perder, querida. Foi o mais barato aluguel que eu encontrei.
 _Claro, amor, não é isso. É que...

— Venha ver o nosso quarto. Quase não coube todos os móveis. Vai ficar um pouco apertado, mas...

— Mas, querido...

—A cozinha é do jeitinho que você gosta. Espaçosa, bem iluminada... Dá até pra fazer uma copa conjugada.


Viro-lhe as costas. Não consigo mais encará-lo de frente. Era como se o estivesse traindo.. Não podia deixar que continuasse a mostrar-me a casa. Recupero-me rapidamente. Viro-me ainda posso vê-lo caminhando até o final do corredor da cozinha. Abre uma porta e grita:


Querida ,venha ver o quintal!