quinta-feira, 15 de abril de 2010

CONTO DE QUASE FADAS


3- Crisálida


Ainda me lembro de meu pai sentado à escrivaninha. E em cima dela, pilhas de moedas que eu insistia em derrubar para tornar a empilhar. Ele, com um velho pijama de listas já desbotadas. Eu às vezes me divertia acompanhando as listas que iam dar naqueles pés enormes, sempre secos e de unhas muito bem aparadas por minha mãe.Os negócios nao iam bem. Os pagamentos aos fornecedores estavam atrasados e ele já não sabia se podia levar adiante a mercearia. A falência era inevitável.E, agora, meu pai estava morto, sem poder explicar que nome de mulher era aquele que pronunciara antes de dar o último suspiro, deixando minha mãe inconformada, não só por sua morte, mas pela irrisória pensão e a imensa dívida que lhe deixou. Eu,nos meus cinco anos, já começava a entender o meio ovo de todas as refeições daqueles dias difíceis.
_Sua mãe envelheceu muito nestes últimos meses _ ouvia repetir insistentemente nossa vizinha para a minha irmã mais velha _vai precisar muito de vocês para acabar de criar os filhos menores. Ainda mais sem o pulso de um homem. 
Nem parece que tanto tempo se passou. As coisas não mudaram muito a não ser a condição financeira: uma boa casa alugada, bons móveis, tv em cores, a nossa estante cheia de livros que a gente nunca lê, um carro na garagem... Para meus familiares e amigos ele parecia um “bom partido”, “rapaz de boa família”. Casar, não era para mim uma boa saída para a situação que se perpetuava por longos e amargos quinze anos. Eu estava mesmo apaixonada por ele. Aquela pose de quem tudo sabia, citando Camões, Platão,Marx me deixava boquiaberta e orgulhosa. Mas, como o meu pai, ele me deixa trabalhar. Diz que a gente não precisa. “Afinal não lhe dou de tudo ?”. “E as crianças precisam de uma mãe, sentiriam muito a sua falta”.
Não discuto. Ele deve estar certo. “Sempre foi assim desde que mundo é mundo. A nós, mulheres cabe manter a roupa dele sempre limpa e muito bem passada para que nunca reclame” _ diz minha mãe. E eu sigo-a mesmo sem entender muito bem porque.
Ele se despede de saída para o trabalho, com um doce e apaixonado beijo. Jogo-lhe outro à distância. Entro. 
Nada mais para fazer, pego aleatòriamente um livro na estante. Ouvi algum dia alguém dizer que a leitura liberta. Um verbete tomo ao acaso: Crisálida. Esse,ponto,efe,ponto,travessão,do ge,erre...Esse nome agora complicado_ cá, agá, erre, ipicilone, esse, de, a, dois eles, i, esse ( KHRY-AS-LLIS). A pupa dos lepdópteros e de alguns himenópteros; ninfa dos lepdópteros, casulo dentro do qual se dará a transformação de ninfa em borboleta.Ponto. ext. Coisa, indivíduo, innstituição, etc; que não atingiu seu pleno desenvolvimento, ou que num período de imobilidade, antes de passar a ação ou nova fase, travessão. Ver.crisálida. As lagartas, antes de passarem ao estado de crisálidas, escolhem um abrigo, cercam-no de um casulo sedoso , de uma casca sólida, enterram-se ou escondem-se nas copas das árvores, entre folhas , etc, segundo os costumes do grupo a que pertencem. Fixadas pela extremidade posterior do corpo e a um ponto de apoio, à força de se torcerem, fendem a pele do dorso em forma de crisálidas. 
Tudo é uma questão de tempo . Dois dias ou dois anos, não importa. O importante é que seja no momento certo. Quando eu estiver preparada. Afinal é ele quem paga o aluguel, luz, gás, me veste, me despe.
Não consigo me concentrar na leitura . Minha agenda é tudo o que eu preciso agora. Saio a passos largos deixando o eco da porta batendo atrás de mim.
_É da editora ?Por favor, quero falar com o senhor Vanessa. Não? Só com ele mesmo, obrigada. Claro que mandou dizer que não estava. Mas ele não é o único editor.
_Ah! É o senhor mesmo. Eu deixei uns originais aí há uns meses e...
_É um trabalho muito interessante, mas, infelizmente o conselho concluiu que não segue a linha da editora. Você não tem nada assim...mais erótico...você entende...Quem sabe uma editora independente...
_Claro... Não... Absolutamente...Devolvo o fone ao gancho. Acho que não consegui esconder o desapontamento. Argh!, essas feministas. Lutar pelo seu espaço, entrar no mercado de trabalho! Caminho lentamente de volta para casa. Um quarteirão, depois o outro. Mulheres debruçadas no parapeito das varandas , outras arrastando seus filhos pelas mãos. Uma lagarta, bicho escamoso e rastejante. Não pude conter o arrepio e a ânsia ao vê-la. Tentava cruzar o asfalto meio ao transito escaldante. Por várias vezes os pneus parecem passar sobre ela. Pensei-a morta. Mas, não. Ela se estica e segue, na sua lenta cerelidade. Chega a minha porta com esforço. Não sei porque me lembrou minha avó. O passo lento, arqueada, a voz rouca, falha. Mantinha-se por várias horas na varanda frente àquele céu crepuscular, entre os gorjeios dos pássaros em revoada. Aquela visão tinha realmente alguma coisa de lírico, de poético e arcaico. Olhava, parecendo perdida, quem sabe nas lembranças do passado. Foi só o que lhe restou. Nada para contar de si mesma, apenas de vovô. O que ele gostava e o que não gostava. Dela, apenas as prendas domésticas, a cadeira de balanço, os filhos, os netos...O céu e o tricô era o seu horizonte. O deslizar de seus longos dedos sobre as rápidas agulhas e aquele olhar perdido por traz de seu pequeno par de óculos, pôs_me a olha´-la certa vez por longo tempo comovida.
Chave na fechadura, aciono-a. A porta já estava aberta. Dirijo-me a sala pensando em atirar-me no sofá, mas nele já tem alguém absorto em seu jornal. Sento-me ao seu lado e digo-lhe firme e carinhosamente::

_Passe-me o Classificados.

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