sábado, 8 de maio de 2010

CONTOS DE FADAS



6-Festa no CEU


O clima era de tensão. Aquela noite ninguém dormiu, pensando no dia que teríamos. Ninguém sabia o que poderia acontecer, ou melhor não queríamos saber. Naquele momento não desejávamos lembrar dos amigos desaparecidos. Alguns de dentro de suas próprias casas. Com Miguel foi assim. A mãe dele foi chamá-lo para alguém que o procurava em um carro preto, tão sujo de lama que mal se podia enxergar a placa. Aquela foi a última vez que o veria. Sabíamos que o nosso fim não seria muito diferente, mas alguém tinha que fazer alguma coisa.

Nas mãos, apenas uma faixa que, em letras vermelhas garrafais gritavam: abaixo a ditadura militar, saíamos em campo, concentração marcada para a hora do “rush”.ali entre militantes de partido de grupos de estudantes, se juntariam a nós pessoas do povo sem nenhuma prática política, sem armas, mas conscientes da situação que ora se instalava.
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Em poucas horas a multidão foi tomando conta da avenida. Bandeiras em punho fomos caminhando para frente da Assembléia Legislativa, Cinelândia. No caminho mais pessoas foram aderindo, tomados pela revolta dos últimos acontecimentos. Muitos voltavam das filas de feijão ou açúcar, racionados, sem haver conseguido um único quilo para levar para casa. Quando dobramos a “1° de março”... O terrível encontro com o choque da polícia militar. Mais de quinhentos homens armados de metralhadoras e cassetete avançaram em direção à passeata. Entre nós, os gritos, correrias tomaram conta das ruas, substituindo os brados de luta que antes se ouvia. Havia os que enfrentavam os policiais, mas, logo eram abatidos como cães raivosos. Ainda ouvi um milico que gritava: -toma seu agitador de merda – e o cassete descia sobre o corpo já ensangüentado do homem que a esta altura não se podia saber a idade. Sobre os meus pés caiu uma mulher e quando me inclinei para apanhá-la fui arrastado por uma “enxurrada” de pessoas que, desesperadas, tentavam sair daquele tormento e, quando me recuperei vi dois deles, arrastando-a para o camburão, junto com outros tantos.
Enfim o aconchego do “lar”.
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-Chama-se “peixinho’ disse o paisagista. Senti-me como alguém que adotara uma criança. Era tão pequena e frágil, lembrava. Enquanto molho a plantinha, dobra a maçaneta e num repente entra Laurizo. Olhos estupefatos –de quem deve-digo –e desculpo-me em seguida:

-Por uma fração de segundo pensei que fosse um assaltante –você está mais negro do que já é –digo, enquanto tiro-lhe o casaco de lona, que diz ter trocado com alguém. Nunca compra nada. Sempre arranja. Coisa de revolucionário!

-Prática socialista. –ele justifica severamente ao mesmo tempo em que sacode as gotinhas de chuva que insistiam em não penetrar em seu espesso cabelo._mais uma passeata frustrada! Mas não tem nada não. “Eles me pegam vivo e eu escapo morto, derrepente, olha eu de novo”. Aí, o Miller é que estava certo,cara. A decisão pela greve geral é inevitável, é só uma questão de dias. A insatisfação é geral em todos os níveis.

-Eu já não agüentava mais essa casa sem uma plantinha, sei lá...pra dar um colorido,enfeitar um pouco, né, Iso?

Ele não responde e não pára de falar. Percebo que suas sandálias de dedo eram de número maior que seus pés. Trocara, também, como o casaco, pensei. A calça Lee de tão surrada ficaria em pé, se quisesse. Poderia ser confundido, sem dúvida com um mendigo.

Ele segue falando, mas, eu já não o ouço. Tornou-se por demais monótono nesses últimos dias. Assembléia, passeata, aí neguinho vai preso, porrada... Já caiu no cotidiano. Quem foi desta vez? Pergunto eu, andando de um lado para o outro atrás do paninho de mesa.

_Nunca sei onde está nada nesta casa –grito, estendendo os braços para cima em prece –Oh,senhor!

-Teré, Crespo e Daureza, não estavam na avaliação no local marcado, a gente desconfia que deram sumiço neles –responde.
-Bem que se podia fazer uma vaquinha para comprar um novo paninho de mesa. Este aqui já está bem velhinho. E não vem dizer que é surpérfluo , não heim! Até os índios gostam de enfeitar as suas ocas. E vocês não defendem tanto os índios?!

Gostaria de lhe explicar que a relação de trabalho entre os índios é menos antropofágica, que a dos os ditos “civilizados’, mas só tinha cabeça para os meus amigos, agora. O que seria deles? Interrogatório, pau-de-arara, choque elétrico, o caralho. Prefiro morrer com um tiro no meio da testa que negar a minha ideologia, entregar minha gente. O que vai sobrar deles quando saírem, se saírem? Um virou alco ólatra, o outro...- Lembra Nina, aquele professor de história. Gênio, aquele cara. Morreu do coração. Dizem que foi das torturas. E citava Sartre enquanto agonizava na livraria. Que ironia! Tinha acabado de publicar o seu primeiro livro.

-Isso é que dá viver em comunidade. Cadê minha privacidade. Quero flor na sala sim. Não tenho culpa se Deca tem alergia. Frescura, aquele nariz fungando sempre que sente cheiro de flor. Que se dane!

- Pô..., Nina! Eu aqui preocupado dom os meus amigos e você com florzinha. Não está satisfeita, se manda! –retruca Laurizo consternado.

-E onde você pensa que vou morar. Debaixo da ponte?

-Num hotel. Você não tem a mesada do “paizinho”?

-Até que daria, se não fossem esses livros pra comprar todo semestre. Na biblioteca da faculdade nunca tem os livros que os professores pedem. Ou será que são os professores que só pedem livros que a biblioteca da faculdade não tem.. Sei lá. Os colegas não emprestam. Essa de socializar tudo é só na teoria. E, também com esse negócio de crédito, nunca se sabe onde eles estão e aí, toca a procurar o talzinho. Sala 1, sala 2, 3, todas as salas até 20, 30, a semana inteira e no final, conclusão: ela-não-está-no-campus. Quem sabe, na odonto? Ela tem um namorado lá. E nada. Está doente, trancou matrícula, não tem horário que dê pra ela, não conseguiu trocar o horário no serviço Ufa! -expiro resfolegante e dirijo-me ao banheiro:

_ Não vai dormir aí, vai, Deca? Não precisa secar essa cabeleira aí dentro, também, né?Se pelo menos respeitasse o horário que ela mesmo propôs: pela manhã, um acorda cinco minutos depois do outro, toma banho: enquanto isto o outro escova os dentes e etecétera. Cada um procura chegar um minuto depois do outro e blá, blá, blá...

-Quem usou a minha escova de dentes! Os meus dentes eu escovo com o que agora? Arrrrrrrgh! Mas eu descubro quem foi, ou não me chamo Deolinda Carmem de Oliveira.!
E foi baixando a voz enquanto chegava à sala. A boca aberta, a lingua sobre os dentes, os olhos fechados e finalmente o espirro. E outro, e outro:

-Onde estão elas... Eu...enforco quem colocou essas malditas...flores aqui.

E se dirigiu a mesinha de onde as ditas exalavam naturalmente o seu perfume.Num só pulo, Nina largou os apetrechos de maquilagem com o que se borrocava e em três passos saltou sobre elas fazendo cair o vasinho que espatifa como farofa no assoalho de madeira corrida.

-Não se pode ter nada nesta casa. Se é que se pode chamar isto de casa. Lá se foram meus últimos trocadinhos e tudo para dar um pouco de vida a este “chiqueiro” –e desata a chorar, passando os dedos magros e pontudos sobre os cabelos de nissei, deixando cair-se sobre o velho sofá, simulando desmaio.Deca larga os cacos que catava do jarro quebrado, senta-se ao lado de Nina e abraça-a:

-Custa você respeitar a minha alergia, Nina. Por que você não comprou flores de plástico, de papel, de pano, sei lá...São até mais duráveis? Você não sabe o que é ficar assim com o nariz escorrendo -procuro um trapo ao redor,vou até o quarto, procuro um farrapo de camiseta. Lenço, nem pensar... Neste momento cai da gaveta de cima do roupeiro um cartão que dizia: “Festa no CEU”, 31 de março, quarta feira, às 9: 30 horas. Escuto os estalidos das sandálias de dedo entrando no quarto. É Laurizo. Apressado como sempre, entra no quarto, pega uma camisa velha, maltrapilha, tão suja e fedida quanto a que usava naquele momento. São assim apressados e desleixados as pessoas do primeiro decanato de Aires -pensei rapidamente. Ele não reparou que eu mexia em sua gaveta. Procurei o envelope que, com certeza, guardava o cartão. Não se manda convite para uma festa assim, sem envelope. Observei que as letras eram recortadas de revista.. Surpreendi-me sorrindo ao lembrar das estórias que meu pai contava. Essa era da festa no céu, aquela em que o sapo dizia: Oba!, com seu bocão grandão. Observava que só depois, que o final do convite prevenia: “Quem tem boca grande, não entra.”. Sufoquei o riso. Não seria um recado, uma mensagem cifrada, terrorista. De quem? Fechei a porta, num ímpeto. Do outro lado, agora, o silêncio.

Acordo chorando por um pesadelo terrível: uma passeata, multidão, corre-corre. Na confusão soltei a mão dele e nos perdemos. Faz hoje, vinte anos. Ele ainda não veio. Desdobro o jornal que alguém deixara no chão da varanda. Manchete:
Casa do Estudante Universitário sem luz. Que coincidência infeliz!

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